Textos

Ciclo de debates, textos sugeridos:

MOVIMENTO ESTUDANTIL:


1.Entre o Atraso e a Precocidade, Entre o Velho e o Novo: Nem UNE nem Nova Entidade, no link: http://outrosoutubrosvirao.files.wordpress.com/2009/05/nem-une-nem-nova-entidade5.pdf


2. O movimento estudantil e a luta de classes, Haldor Omar, no link:

http://cfpbio.files.wordpress.com/2008/10/o-movimento-estudantil-e-a-luta-de-classes-haldor-omar1.pdf

3. A UNE, vinte e cinco anos depois de Salvador: Duas ou três coisas que eu sei sobre ela
Valério Arcary:

Professor de história do CEFET-SP, foi delegado ao Congresso de Reconstrução da UNE em 1979
e candidato pelas chapas Novação e Mobilização Estudantil nas eleições diretas da UNE
Umas das teses apresentadas ao próximo congresso da Une - aquela que é defendida pela maioria da atual direção - publica uma declaração, que me é atribuída, elogiando a UNE - a UNE de hoje, não a UNE do passado - como uma das entidades estudantis mais democráticas do movimento estudantil mundial. Esta declaração é falsa. Não fui consultado. Aqueles que a divulgaram estão usando o meu nome de forma desonesta. A corrente político-estudantil majoritária na direção da UNE - a União da Juventude Socialista, UJS - decidiu publicar uma declaração feita anos atrás, fora do contexto, para gerar, conscientemente, confusão política.

Depois da eleição do Governo Lula, a localização política da UNE mudou de tal maneira que ela ficou irreconhecível. Passou de uma oposição, às vezes condicional ou limitada às políticas educacionais do MEC sob Paulo Renato e FHC, para um apoio acrítico à gestão de Tarso Genro. A decadência política da UNE é hoje indissimulável: na maioria dos centros mais avançados e organizados do movimento estudantil, que permanecem sendo as Universidades públicas, a direção da UNE não é mais uma referência. Na verdade, a direção da UNE é desprezada pela ampla maioria do ativismo estudantil real e, se essa crise de representação nos remete aos impasses do movimento estudantil, desde muitos anos atrás, se agravou de maneira aguda depois da eleição de Lula. A subordinação política ao governo, dificilmente, poderia melhorar esta situação, e deixar de se expressar em métodos degenerados para manter o controle do aparelho. A manipulação de uma declaração é um dessas conseqüências, mas não é a mais importante.

É verdade que, no passado, antes da cooptação da UNE pelo Governo Lula, elogiei a UNE mais de uma vez - creio que merecidamente - em entrevistas gravadas, e em textos escritos, como sendo uma das entidades mais democráticas do movimento estudantil à escala internacional. Não é desconhecido que, nas últimas duas décadas na maioria da América do Sul, sequer existiam organizações estudantis nacionais com alguma mínima representatividade e, quando existiam, eram controladas, freqüentemente, pelos governos, e dirigidas por forças reacionárias. Na Argentina, por exemplo, um dos países que mantêm, comparativamente, maior proporção da juventude em idade escolar matriculados em Universidades, o controle das entidades estava sob influência dos Radicais, e os congressos estudantis eram indescritíveis, de tão artificiais, burocráticos e manipulados. Não era preciso muito boa vontade nos anos oitenta e noventa, bastava um pouco de bom senso, para reconhecer que a UNE era uma entidade diferenciada, estruturada sobre um movimento estudantil com vida, luta, disputa, controvérsias, alternativas e campanhas.

Paradoxalmente, agora que esse quadro melhorou um pouco, com algumas experiências animadoras de mobilização e organização estudantil ao lado dos trabalhadores - e independente do Estado - na Argentina, Equador, Bolívia e na Venezuela, a UNE brasileira passa para a retaguarda da retaguarda: aceita, alegremente, o atrelamento ao governo Lula que, na reforma universitária, assegura uma anistia fiscal de dezenas de milhões anuais para o setor privado de ensino - pendurado em empréstimos milionários no BNDES - enquanto prossegue o abandono das universidades públicas. A reforma universitária do Governo do PT, no qual o PCdB detém posições chaves, defende até a participação do capital estrangeiro na educação, mas, atenção (ufa!) limitado a "só 30%". Isto porque é um governo de forças "nacionalistas": ai de nós, se não fossem.

Escrevo estas linhas com amargura, porque, quando voltei para o Brasil, dediquei alguns anos de militância à UNE. É com emoção que me recordo do Centro de Convenções em Salvador em 1979, ainda em obras - na verdade, não mais do que uma estrutura de concreto nua - onde muitos milhares se reuniram, desafiando a ditadura para o Congresso de Reconstrução. Foi lá que votamos a histórica Carta de Princípios que definia para a UNE um campo de classe. Foi lá que juramos que a nossa UNE estaria sempre ao lado dos trabalhadores, e da luta do povo mais pobre e mais oprimido. Essa UNE que era de todos nós - de uma gente que não temia a ditadura - infelizmente, já não existe mais. Agora que a geração de Salvador chegou ao poder, receio que, afinal, não éramos muitos os que levamos aquele juramento a sério.

De qualquer forma, mesmo recorrendo à perspectiva que os anos nos oferecem, levando para longe a inocência, creio que os sentimentos vividos naqueles dias na Bahia, ainda sejam uma parte do melhor que carregamos em nós. Guardo, também, excelentes recordações pessoais das polêmicas com Aldo Rebelo - ásperas, talvez até exaltadas, nunca ofensivas - Marcelo Barbieri e Paulo Massoca, nos congressos em Piracicaba de 1980 e 81. Tenho orgulho de ter estado presente, já como convidado para debates, em muitos dos Congressos e CONEG's da UNE.

A UNE esteve na linha de frente da resistência ao Governo Figueiredo entre 1979 e 1984, e cumpriu um papel na campanha das Diretas. Em seu melhor momento, a UNE foi a entidade que furou o cerco e encabeçou o Fora Collor em 1992. Assumiu essa responsabilidade, quando o partido majoritário na esquerda brasileira, o PT, era hostil à mobilização para derrubar o governo, denunciando a campanha para derrubar Collor - afinal, um presidente eleito - como "golpista", menos de seis meses antes da votação do impeachment, o que aumenta o mérito de quem estava contra a corrente.

Por suposto, sua trajetória ao longo dos últimos vinte e cinco anos não poderia estar isenta de crítica, mas isso é hoje polêmica histórica. A UNE titubeou, em minha opinião, algumas vezes diante do Governo Sarney, por exemplo, e creio não ser injusto se ainda me lembro de alguns zigue-zagues durante o Governo FHC. Não poderia esquecer que, há mais de uma década, talvez, que a UJS só permaneceu como maioria elegendo muitas centenas de delegados em Universidades privadas - das regiões mais remotas e arcaicas do país - onde as condições de isolamento ou de repressão impedem a existência de um movimento estudantil. No entanto, somando e diminuindo, a UNE passou intacta senão incólume, como um ponto de apoio ou um espaço de construção da frente única para a luta pelo ensino público e gratuito, até à adesão ao Governo Lula.

Essa UNE, é triste admitir, não existe mais. A UNE que vai fazer Congresso será somente um instrumento auxiliar do Governo Lula. Não pertence aos estudantes. Ao lado da CUT, é um cadáver insepulto. Permanecerá, possivelmente, e até poderá prosperar como um aparelho atrelado ao MEC. O seu destino parece indivisível do julgamento que a história vier a fazer do Governo Lula. E a História será mais implacável que estas palavras.

SAÚDE:

1.A saúde-doença como processo social, de Asa Cristina Laurell.


2.Redefinindo as práticas de Saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde, Eymard Mourão Vasconcelos


3. A produção social do humano e a determinação da saúde doença, de Guilherme Albuquerque ( Professor assistente do Departamento de Saúde Comunitária, Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná):




A vida humana se produz em sociedade. Para produzir tudo o que necessitam para sobreviver, os homens, em conjunto, produzem roupas, alimentos, moradias, meios de transporte, meios de comunicação, ferramentas, máquinas, fábricas etc.
A produção disso tudo só é possível pela divisão social do trabalho. Alguns produzem alimentos, outros produzem cuidados médicos, outros produzem automóveis, computadores, máquinas, moradias etc. e, com isso, todos conseguem ter à sua disposição tudo o que uma pessoa isoladamente não conseguiria. Cria-se, portanto, uma divisão social do trabalho e uma relação de interdependência entre os diversos setores da produção. Uma pessoa, isoladamente, não conseguiria viver na condição alcançada pela humanidade, pois não conseguiria produzir tudo o que em sociedade torna-se possível. A condição humana, portanto é dada nessa relação de interdependência.
A sobrevivência humana, no entanto, diferente da dos outros animais, não se dá através de uma relação instintiva de subordinação à natureza. É da natureza, também, que o homem retira sua sobrevivência, mas, através de sua ação intencional o homem modifica a natureza, subordinando-a a seus desígnios e, assim, produzindo seus meios de sobrevivência. Não apenas extraindo diretamente da natureza o que necessita, mas produzindo objetos que não existiam na natureza, através da modificação da mesma.
Se a humanidade só retirasse o que a natureza oferece, como no caso dos animais, em tempos de frio extremo, de seca, de “entressafras”, morreríamos de frio, sede ou fome e não conseguiríamos jamais voar, explorar o espaço, ou armazenar informações num computador. Ao modificar a natureza, o homem acaba por controlar seus movimentos de forma a adequá-la a suas necessidades.
Assim, a vida humana se produz conforme se organiza em sociedade a produção dos meios de sobrevivência. A vida humana se realiza dentro dos limites e possibilidades que o desenvolvimento da produção social estabelece. Depende, portanto, do grau de desenvolvimento e da forma como a própria sociedade se organiza.
O ser humano difere dos demais animais, portanto, por produzir seus meios de sobrevivência e por fazê-lo através do “trabalho humano”, que é uma atividade direcionada a um fim.
Os demais animais (formiga, abelhas, castor, joão-de-barro etc) também trabalham, mas sempre da mesma forma, “obedecendo” ao instinto da espécie, subordinados à natureza. O ser humano não obedece ao instinto, subordina a natureza a seu desejo e necessidade. A partir de uma idéia, realiza movimentos no sentido de torná-la realidade. Idealiza um objeto, e depois atua sobre a natureza no sentido de produzi-lo. Cultiva plantas ou cria animais, modifica-os para sua alimentação (do leite faz a manteiga, iogurte, etc.), para vestir-se (do couro, da lã de carneiro, da seda, faz roupas, sapatos, sacolas etc.); utiliza plantas como o algodão também para produzir suas roupas, utiliza fungos, por exemplo, para a produção de medicamentos; constrói moradias utilizando areia, fazendo tijolos de barro, cimento e cal queimando as rochas, fundindo ligas metálicas, fazendo vidro a partir da sílica; produz meios de transporte que o levam muito longe e rápido sem exaurir suas energias, que lhe permitem navegar e voar; produz meios de comunicação que lhe permitem ver e conversar, em tempo real, com alguém que esteja do outro lado do globo terrestre; constrói aparelhos que lhe permitem enxergar microscopicamente ou enxergar a distâncias muitíssimo longas; produz um código de comunicação, expressando idéias através de símbolos (abstrações) orais, as palavras; registra essas idéias através da palavra escrita, estendendo, com isso, infinitamente sua memória.
Com tudo isso, com a utilização dos meios de vida que produz, a humanidade consegue produzir cada vez mais recursos com menor esforço, garantindo a sobrevivência de mais gente por mais tempo. Reduz a mortalidade precoce, aumenta a longevidade, aumentam as possibilidades de desenvolvimento inclusive do saber, uma vez que cada um vive mais tempo.
É fundamental percebermos, no entanto, que cada coisa que existe na natureza, uma vez tomada pelo homem para um determinado fim, torna-se objeto da ação humana, torna-se objeto humano. São novos objetos, mesmo que não tenham sido modificados em sua forma e conteúdo, pois modificaram-se em seu significado. Ganham um novo significado pela ação humana. Um galho de árvore, com a ação humana, vira alavanca, arco, flecha, bengala, espeto; o movimento das águas, devido à gravidade, torna-se energia hidráulica que será transformada em energia elétrica.
Ou seja, ao produzir objetos e utilizá-los para viver, o homem produz uma nova realidade e se produz com ela. Isso quer dizer que o homem é produto da civilização, é um produto social e não mais somente da natureza. O ser humano, portanto, não nasce pronto. Vai adquirindo a condição humana com aquilo que a sociedade produziu. É isso que lhe permite objetivar em si aquilo que caracteriza a condição de humanidade. O ser humano vive 100 anos, enxerga o que ocorre no outro lado do mundo, voa, constrói o colisor de hádrons para tentar compreender a origem do universo, mas esta condição não está dada pela natureza ao nascer, como está dada aos pássaros a condição de voar.
O homem continua sendo um ser biológico, mas sobre o qual se depositam inúmeras produções sociais, culturais, que o caracterizam, que o objetivam muito diferente dos demais animais. É um ser, agora, que precisa utilizar os objetos humanos produzidos para adquirir o grau de humanidade que a humanidade atingiu. Precisa ser educado, precisa aprender a utilizar o garfo, a faca, a leitura, o computador, os automóveis, os antibióticos, ou seja, tudo aquilo que a sociedade produziu e exige que ele utilize para poder viver o quanto tornou possível e realizar aquilo que o gênero humano realiza: voar, enxergar do outro lado do mundo, guardar suas memórias indefinidamente etc.
Que tipo de vida, o quanto poderá viver, que tipo de desgaste de energia, de possibilidades de desfrute dos bens produzidos, que bens estarão disponíveis, dependem do grau de desenvolvimento adquirido pelas forças produtivas da sociedade em que vive. Ou seja, tudo na vida em sociedade, tudo na vida humana, é determinado pelo grau de desenvolvimento alcançado pela sociedade, é determinado socialmente.
Mas o fato de ser determinado socialmente não inclui apenas a questão do grau de desenvolvimento das forças produtivas, também depende das relações de produção, ou seja, de como estão organizadas na sociedade não somente as relações dos homens com a natureza, mas dos homens entre si.
Em sociedades de classes, as relações que se estabelecem entre as classes determinam diferentes possibilidades e restrições ao desenvolvimento da vida e, conseqüentemente, diferentes formas ou possibilidades de viver, adoecer e morrer. Nessas sociedades, uma classe detém a propriedade dos meios de produção e outra classe detém apenas sua força de trabalho. A classe que não possui meios de produção próprios e, portanto, precisa vender sua força de trabalho para sobreviver, terá maior ou menor desgaste no trabalho e maior ou menor possibilidade de acesso aos produtos da produção social, na dependência da forma como se insere na produção e no consumo.
Se entendermos que saúde significa estar vivo e em condição de nos objetivarmos como humanos, realizarmos em cada um de nós o que a humanidade já estabeleceu como possibilidade (viver 100 anos, voar, etc.), torna-se muito claro que essa objetivação depende da possibilidade de apropriação daquilo que a humanidade produziu. O que estamos querendo dizer é que a saúde, a possibilidade de viver por todo o tempo e na qualidade que caracteriza o gênero humano, depende do acesso ao produto da civilização e esse acesso se dá para cada grupo, de diferentes formas, na dependência de como se organiza a vida em cada sociedade.
Essa é a essência da idéia da determinação social da saúde e da doença: a forma como se organiza produção da vida em sociedade determina diferentes formas de viver, adoecer e morrer, para os diferentes grupos sociais.
Numa determinada sociedade, quando as forças produtivas se desenvolvem, na maioria das vezes reduz-se o desgaste de energia do trabalhador para a produção, melhoram as possibilidades de realização da vida dos indivíduos, aumenta a expectativa de vida, modificam as causas de adoecimento e morte. Se, por exemplo, olharmos para o Brasil colonial e compararmos com a atualidade, veremos que a expectativa de vida aumentou significativamente e que, se naquela época as causas de morte estavam muito ligadas às doenças infecciosas, hoje estão ligadas mais à violência e às doenças crônico-degenerativas.
Num mesmo momento histórico, diferentes formas de organizar as sociedades também repercutem de forma diversa sobre a saúde, seja pela diferença no grau de desenvolvimento das forças produtivas, seja pela diferença na forma de se estabelecer as relações sociais. Os EUA possuem melhores condições de saúde do que os países africanos em geral, devido, principalmente, ao maior grau de desenvolvimento de suas forças produtivas, que faz com que os norte americanos tenham menor desgaste na produção e maior acesso ao consumo de produtos necessários para manter a saúde, como alimentos, medicamentos etc. Por outro lado, os indicadores de saúde dos EUA são muito inferiores aos do Canadá (que possui um grau de desenvolvimento das forças produtivas no máximo similar ao dos EUA) e são muito inferiores, também, aos indicadores de saúde de Cuba que, evidentemente, possui um grau de desenvolvimento dos meios de produção extremante inferior. O que determina a diferença, nesse caso, são as relações de produção, que nos EUA são marcadas pela extrema desigualdade.
Finalmente, numa sociedade de classes, num mesmo momento histórico, o modo de viver, adoecer e morrer das diferentes classes é bastante diverso. Numa sociedade como a nossa, por exemplo, já se sabe do que mais adoecem e morrem os médicos, os bancários, os banqueiros, os pedreiros, os engenheiros, os estivadores, os trabalhadores de telemarketing, os desempregados. Têm uma expectativa de vida bastante diversa e adoecem e morrem por causas bastante distintas, devido ao modo como se inserem no mundo da produção e no consumo.
Médicos adoecem e morrem mais de doença cardiovascular e suicidam-se mais que a população em geral. Pedreiros morrem por queda dos prédios em construção, operadores de telemarketing apresentam maior incidência de doenças ósteo-articulares. Banqueiros têm mais chance de viver mais e mais plenamente que os demais.
Enfim:
1) a doença ocorre de modo diferente nas diferentes sociedades, nas diferentes classes e estratos de classes sociais, apesar das semelhanças biológicas entre os corpos do seres humanos que as compõem.
2) a saúde, entendida como a possibilidade de objetivação em cada indivíduo do grau de humanidade que a humanidade produziu, apresenta-se de modo diferente nas diferentes sociedades, nas diferentes classes e estratos de classes sociais, apesar das semelhanças biológicas entre os corpos do seres humanos que as compõem.
3) a vida humana é determinada socialmente em todas as suas dimensões, inclusive a da saúde.

BIBLIOGRAFIA:

LUKÁCS, G. Ontologia do Ser Social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.
DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 3.ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2004.
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996. v.1, t.1.
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martin Claret, 2004.




EDUCAÇÃO:

1.Um Novo Senhor da educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do capitalismo" de Roberto Leher

2. Cinco observações sobre a crise da educação pública de Valério Arcary:




Cinco observações sobre a crise da educação pública

Valerio Arcary, professor do CEFET/SP, militante do PSTU, é doutor em História pela USP e autor de As Esquinas Perigosas da História, situações revolucionárias em perspectiva marxista.
                                                                 
“A doutrina materialista de que os homens são produtos das circunstâncias e da educação, e de que portanto, seres homens modificados são produtos de circunstâncias diferentes e de uma educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens, e que o  próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade(...) A coincidência da modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como prática revolucionária.” Karl Marx[1]

A chain is no stronger than its weakest link
(Uma corrente não é mais forte que seu elo mais fraco)
Sabedoria popular européia
        
Este texto resultou de uma comunicação apresentada no seminário do ILAESE em novembro de 2005. Comentaremos cinco temas que foram, na ocasião, objeto de uma discussão coletiva. A primeira idéia é o reconhecimento do fracasso da educação pública como instrumento da mobilidade social. Uma das premissas do capitalismo era a igualdade jurídica dos cidadãos. A promessa dos reformistas brasileiros foi, contudo, ao mesmo tempo, mais audaciosa e confusa: afirmaram durante os últimos vinte anos de regime democrático liberal, antes de chegar ao poder, que a educação seria, mesmo preservado o capitalismo, uma via de maior justiça social. A escola poderia mudar o Brasil, diminuindo as desigualdades sociais. Através da meritocracia, da igualdade de oportunidades, a chamada equidade, a justiça diante de obstáculos ou   de barreiras que são ou deveriam ser universais, existiria a possibilidade de melhorar de vida. Todo a promessa reformista esteve construída em cima desta tese. “Estudem e trabalhem duro”, e terão um futuro superior ao dos vossos pais.
Educação e trabalho para todos garantiriam, presumia-se, uma maior coesão social à democracia burguesa na periferia do capitalismo, e serviam de álibi para a confiança dos reformistas nas possibilidades de “controle social” do mercado. Abraçados a esse programa, o desenvolvimento econômico substituía, alegremente, o socialismo como horizonte estratégico da esquerda eleitoral. A democracia liberal afiançaria, gradualmente, prosperidade para todos. Seria uma questão de paciência. Mas, quando chegaram ao poder, fizeram um “desconto” na promessa, e o direito à educação universal foi subtraído: no lugar de mais verbas para a educação pública, mais isenção fiscal para a educação privada. Sobraram as políticas compensatórias como o “Bolsa Família”: uma amarga contrapartida.
Todas os levantamentos estatísticos disponíveis a partir do censo do IBGE de 2000 e dos PNAD’s dos anos seguintes informam que, apesar de melhoras quantitativas modestas dos índices educacionais, o projeto reformista tem sido um fiasco. O Brasil está mais injusto que há vinte anos atrás, o desemprego mais alto, os salários médios congelados, enfim, a vida ficou mais difícil. A expansão da rede pública foi significativa nos anos sessenta, setenta e oitenta, mas não diminuiu a desigualdade social. Depois, a partir dos anos noventa, vieram as políticas sociais focadas que o governo Lula está preservando, e fracassaram, ainda mais estrepitosamente. A mobilidade social, ou seja, a esperança de ascensão social de uma geração para outra permanece muito pequena. A desigualdade social brasileira continua entre as mais elevadas do mundo. Vinte anos de democracia burguesa e de alternância no poder municipal, estadual e nacional entre a centro direita e a esquerda reformista, que tiveram oportunidade de aplicar os mais variados projetos educacionais, não trouxeram maior mobilidade social. Segundo os dados do IBGE, os 10% mais ricos da população ainda são donos de 46% do total da renda nacional. Já os 50% mais pobres ficam com apenas 13,3%. Há décadas o Brasil anda de lado, ou seja, fica para trás.

A educação não garante mobilidade social ascendente
Eis a primeira questão: a mobilidade social e o lugar da educação como instrumento de ascensão. A primeira constatação da realidade social no capitalismo periférico é que as possibilidades de ascensão social agora estão congeladas. A sociedade brasileira teve, durante algumas décadas, comparativamente à situação atual, uma  mobilidade social significativa. Se analisarmos a origem social da maioria da população urbana adulta e, também, o que podíamos chamar o “repertório cultural” das gerações anteriores nas nossas próprias famílias, veremos que, com raras exceções, uma grande parcela foi, individualmente, favorecida pelo aumento da escolaridade de um período histórico anterior. Esse fenômeno é chave para compreendermos a crise atual, porque foi excepcional. O padrão histórico dominante na história do Brasil foi outro. Durante gerações nossos antepassados foram vítimas da imobilidade social e da divisão hereditária do trabalho. Os que nasciam filhos de escravos, não tinham muitas esperanças sobre qual seria o seu destino. Os filhos dos sapateiros já sabiam que seriam sapateiros.
No entanto, a sociedade brasileira entre 1930 e 1980, mesmo considerando-se os limites impostos pelo seu estatuto subordinado na periferia capitalista, foi uma das economias com mais dinâmica no mercado mundial. Perpetuaram-se as desigualdades, por suposto. Mas, existiu durante décadas um capitalismo com urbanização e industrialização. Os dois processos não tiveram a mesma proporção dos anos 30 aos 70. O certo, todavia, é que existiu mobilidade social. Logo, a promessa reformista de que seria possível mudar o capitalismo e viver melhor, através de uma educação pública universal – a percepção popular do nacional-desenvolvimentismo - era uma promessa que alimentava esperanças. Garantia alguma coesão social para a dominação burguesa. A força de inércia das ilusões reformistas – a ideologia de colaboração entre capital e trabalho que resiste à necessidade do confronto e da ruptura - repousava nessa história. A sua superação exigirá uma experiência prática compartilhada por milhões.
Os que defendemos o projeto revolucionário, não ignoramos que as massas viveram a etapa histórico-política dos últimos vinte anos depositando expectativa em Lula e no PT, porque permaneciam prisioneiras das ilusões reformistas. Não defendemos a revolução socialista porque temos um temperamento exaltado. Não apostamos que a revolução brasileira possa vencer sem a mobilização e organização das grandes massas populares. Os mais apressados e nervosos não resistem, geralmente, aos longos anos de uma militância contra a corrente. Os mais exasperados, depois das primeiras decepções, ficam pelo caminho. A luta revolucionária é um assunto para gente muito equilibrada. A revolução exige dedicação, perseverança, exige espírito de sacrifício, reflexão, muita crítica, muita autocrítica, muita disposição de mudar. Gente muito perturbada não tem disposição de mudar, já acha que é perfeita; os revolucionários, não. Acham que são gente incompleta, gente imperfeita, gente em construção. Acham que têm que se corrigir uns aos outros. A adesão ao projeto revolucionário se fundamenta na História: o projeto reformista não tem viabilidade no tempo que nos tocou viver.
Quando raciocinamos neste horizonte de perspectiva, verificamos que a economia brasileira perdeu o impulso que teve até os anos oitenta. Concretizemos: mobilidade social, neste contexto, significava quais eram as possibilidades que cada um tinha de melhorar de vida, preservadas as relações sociais dominantes. Essas taxas são mais acentuadas em uns períodos e menos acentuadas em outros; há sociedades mais congeladas, numa etapa histórica, e há sociedades mais dinâmicas. A questão decisiva é que o Brasil é hoje uma sociedade muito congelada, comparativamente, àquilo que ela foi. O capitalismo brasileiro do século XXI é um capitalismo com taxa de mobilidade social muito baixa, e a educação deixou de ser um trampolim social.
As possibilidades de se ter recompensas econômicas e sociais, ou uma vida mais segura e mais confortável, através do ensino, está seriamente em crise. Além disso a crise já foi percebida pelas massas trabalhadoras, e mesmo pelas camadas médias. Ainda que façam o possível e até o impossível para garantir uma escolaridade elevada para os seus filhos. Na verdade, não nos enganemos, a função social da educação na sociedade contemporânea é estabelecer a divisão do trabalho que vai permitir a perpetuação das relações sociais existentes. Ou seja, a educação não questiona as relações sociais.
Uma outra forma de ilusão reformista é acreditar na quimera de que uma população mais educada mudaria, gradualmente, a realidade política do país. Se fosse assim, a Argentina ou a Coréia do Sul, entre inúmeros exemplos de sociedades que tiveram índices elevados de escolaridade, não seriam infernos para os trabalhadores. Não há maneira de diminuir a desigualdade material e cultural, sem ruptura com  o imperialismo. O que mudará o Brasil será a luta popular anticapitalista. Todas as promessas reformistas de que a educação seria o instrumento meritocrático que permitiria que cada um tivesse a sua justa função na sociedade, isto tudo está numa crise completa. Mas, ainda em crise, esta ideologia mantém influência entre as massas – porque as ilusões não morrem sozinhas - em especial entre os professores, que são, paradoxalmente, um dos instrumentos sociais de convencimento de que a escola poderia mudar a sociedade.
A ordem capitalista não seria, todavia, possível, se a maioria das pessoas não acreditasse que esta divisão do trabalho não é algo razoável. É uma ideologia reacionária porque naturaliza aquilo que não é natural. Legitima o que é anti-humano. A ideologia de que o capitalista cumpre uma função necessária, a herança é justa, a desigualdade é inevitável, e a escola é o instrumento que permite a seleção que justifica a divisão do trabalho e a divisão em classes é uma fraude. Primeira falsidade: os patrões não são necessários. Os patrões são inúteis, os proprietários do capital são uma excrescência parasitária que vive da extração de trabalho que não é remunerado. Segunda falsidade: a desigualdade não é natural. Não é razoável vivermos numa sociedade em que a diferença entre o piso e o teto das remunerações varia de um para quinhentos. Como é possível aceitar que o trabalho de uma hora de alguém, seja centenas de vezes mais valioso que o trabalho de outro?
No Brasil, a desigualdade é tão gigantesca que a classe capitalista é invisível. Consideremos os números: está prevista para 2005 que a rolagem dos juros da dívida interna deverão consumir R$ 150 bilhões. No terceiro ano do mandato de Lula serão batidos todos os recordes, nunca ocorreu uma transferência líquida de riqueza tão grande do Estado para o capital. O estoque da dívida interna, porém, continuou crescendo e se aproxima dos R$1 trilhão de reais, um número imponente. Mas, o que é mais espantoso é que vinte mil pessoas físicas irão receber, cada uma delas, R$ 500.000 por mês com a rolagem dos juros da dívida interna. Ao mesmo tempo, todo o orçamento da previdência social brasileira – a previdência é, de longe, o programa social mais significativo – que beneficia vinte e quatro milhões pessoas está estimado em R$ 142 bilhões. De um lado, vinte mil rentistas. De outro, mais de vinte milhões de famílias. Esta é a realidade do Brasil. A burguesia brasileira só é identificada quando usamos o microscópio da estatística e as lentes de aumento da sociologia. É preciso uma análise liliputiana da sociedade brasileira para encontrarmos os proprietários do capital. A educação perdeu para as famílias populares, portanto, o significado de promoção social meritocrática.

O atraso cultural da sociedade brasileira é responsabilidade do Estado
O segundo tema é a idéia de que nós vivemos numa sociedade que não superou significativo atraso cultural. Uma aferição de qual é o nível de escolaridade e o repertório médio da sociedade de hoje, em relação ao que ela foi no passado, mas, também, uma comparação da sociedade brasileira com outras sociedades da periferia, como os países do Cone sul, não é nada animadora. O Brasil é uma sociedade que tem uma forte defasagem cultural.
O balanço é devastador: o número de estudantes matriculados aumentou, mas, para desespero nosso, tão lentamente, que a melhora é quase imperceptível. O número de certificados emitidos cresceu, mas a qualidade do ensino caiu. Mesmo com uma presença maior das crianças nas escolas, temos ainda pelo menos 14,6 milhões de analfabetos. Os iletrados são, contudo, inquantificáveis. O analfabetismo funcional – incapacidade de atribuir sentido ao texto escrito em norma culta - está na escala das dezenas de milhões, talvez mais da metade dos brasileiros com mais de quinze anos. Da população de 7 a 14 anos que freqüenta a escola, pelo menos um em cada três não concluem o ensino fundamental. Na faixa de 18 a 25 anos, apenas 22% terminam o ensino médio e, mesmo em São Paulo, menos de 20% estão matriculados em cursos superiores. Segundo Marcio Pochmann, do Instituto de Economia da Unicamp: “no Chile, 80% dos estudantes de 15 a 17 anos estão no ensino médio. Se quisermos chegar lá, temos que incluir 5 milhões de jovens, formar 510 mil professores e construir 47 mil salas”.[2]
Resumo da ópera: o Estado brasileiro, mesmo na forma do regime democrático - não importando quais os partidos na sua gestão, se o PMDB, PSDB, PFL ou PT - continuou drenando recursos dos serviços públicos para o Capital. Políticas sociais focadas e compensatórias, como o Bolsa Família de Lula, e outros que o antecederam, não obtiveram resultados significativos. O Estado ao serviço do Capital se demonstrou historicamente incapaz de garantir uma educação pública e universal. Muitas décadas nos separam do início do processo de urbanização e industrialização, e a desigualdade material e cultural não diminuiu.
O atraso cultural da sociedade brasileira tem, entre outras manifestações, uma expressão dramática. O Brasil é um país de iletrados e semi-analfabetos. É cruel constatar isto assim, todavia a realidade é incontornável. Não é fácil abordar este tema porque a maioria dos trabalhadores nutre um sentimento de inferioridade cultural que é indivisível do sentimento de inferioridade social. Todos os que nasceram nas classes trabalhadoras têm, em maior ou menor medida, a percepção de que sabem muito menos do que gostariam de saber e, portanto, sentem inseguranças culturais. Mas, essa dor é muito mais intensa nas amplas massas do nosso país. Não é só uma percepção subjetiva, há um abismo educacional. É um assunto meio tabu, porque é desconfortável. Em geral o brasileiro médio se relaciona com sua pobreza material com dificuldades, mas se relaciona com muito mais constrangimento com sua ignorância. É um tema um pouco intimidador, porém, inescapável para quem trabalha com educação.
A sociedade brasileira do início do século XXI continua uma sociedade iletrada. A burguesia fracassou em trazer o nosso povo para o que podemos chamar de um acervo cultural mínimo do século XX, que é dominar a matemática e a língua. Os “gênios” que nos governam descobriram nestes últimos vinte anos que educação é caro. O Estado não poderia remunerar o Capital e garantir, ao mesmo tempo, a educação pública. Inventaram, em conseqüência, um sistema brutal: cada classe tem a sua escola. O ensino passou a ser uma obrigação de responsabilidade, estritamente, familiar.
A grande maioria do nosso povo não tem outro instrumento de comunicação que a língua coloquial. A televisão não é somente o grande canal de comunicação. Para a maioria é o único, porque estão prisioneiros da oralidade. A norma culta do texto continua um repertório desconhecido para a esmagadora maioria do nosso povo. Os números oficiais que consideram o analfabetismo no Brasil como um fenômeno histórico residual, reconhecem algo abaixo de 15%. O ultimo número de 2003, registrava 12,8% de analfabetos na população com mais de quinze anos. Aqueles que trabalham em educação sabem qual é, na verdade, a dificuldade que nós temos. Pelo menos metade do povo brasileiro reconhece as letras, reconhece que as letras são símbolos gráficos que reproduzem sons, mas o domínio da escrita não é isso.
A dinâmica histórica deste atraso cultural não é animadora, se compararmos o Brasil de hoje com o de nossos pais. O que aconteceu neste intervalo de meio século em que o Brasil deixou de ser uma sociedade agrária, basicamente, é que o acesso à escola pública realmente se massificou, mas a qualidade do ensino público é atroz. Hoje, a grande maioria das crianças brasileiras com até quatorze anos de idade, em números que superam os 90%, está matriculada na escola pública. Mas, esta escola não corresponde às suas necessidades. O fracasso escolar pode se manifestar de diferentes formas: repetição em alguns Estados, ou evasão em outros, ou ainda péssimos resultados nas avaliações por provas. Pode ser um fracasso oculto pela promoção automática, como em São Paulo.
Temos uma situação na qual a divisão social se manifesta através do abismo que separa a escola pública da escola privada. Mercantilizaram a educação.  O capitalismo criou um monstro: o apartheid educacional. A escola privada hoje no Brasil não é somente um fenômeno educacional, é um fenômeno econômico. O faturamento do ensino privado já tem peso significativo no PIB; foi estimado pelo IBGE, para o ano de 2004, acima de R$ 50 bilhões. Talvez nos surpreenda, mas uma das atividades menos regulamentadas pela Receita ou, se quiserem, uma das atividades em que há mais lavagem de dinheiro, é a educação. De tal maneira é a sonegação, que o principal projeto educacional do governo Lula foi a isenção fiscal do ensino superior em troca de bolsas: o Prouni, que renegociou dívidas em troca de matrículas.
Este desastre político-educacional, um apartheid social na educação, tem uma história. A burguesia promoveu, conscientemente, através de seus variados partidos, o desmantelamento da escola pública, cortando as verbas, restringindo a expansão do sistema público. No Brasil, se constituiu uma camada média urbana mais ampla a partir dos anos cinqüenta que, com a crise de estagnação aberta nos anos oitenta e a decadência do ensino público, se viu obrigada a retirar seus filhos das escolas públicas e os colocou na escola privada. Esse processo foi potencializado por que toda a estrutura educacional foi organizada em função de um elemento exógeno, exterior ao aprendizado, o vestibular. O Brasil tem um sistema de acesso à universidade que é peculiar, é uma instituição brasileira, o exame vestibular. Ele ordena todo o edifício, e explica a privatização.
Aqueles que já passaram pela experiência do vestibular não valorizam, freqüentemente, o lugar que ele tem na estrutura educacional. Mas, a morfologia da estrutura educacional no Brasil tem na sua raiz o vestibular. A diferença entre ensino privado e ensino público fundamental e médio é que o aluno que está no ensino público, tem muito menos possibilidades de ser bem sucedido numa experiência incontornável que se chama vestibular. E o vestibular separa os jovens entre aqueles que vão estudar na universidade pública, que são as melhores do Brasil e são gratuitas, e aqueles que vão estudar no ensino privado.

A mercantilização do ensino destruiu a carreira docente
O terceiro tema é uma avaliação da situação do ensino público. A educação brasileira contemporânea agoniza, porque foi completamente mercantilizada. O capitalismo destruiu a escola pública. Não é somente uma situação conjuntural. A escola primária está em crise, as escolas secundárias são impossíveis de administrar, o ensino médio e superior foi privatizado em larga escala. A educação pública é um cadáver insepulto.
A promessa liberal do ensino meritocrático – “estudarás, serás recompensado” -  não tem correspondência com a realidade. Este discurso encontra uma contra-evidência brutal, esmagadora, e muito simples. Os filhos de diferentes classes estudam em escolas separadas: segregação educacional. Isto não é secundário. Estamos tão habituados - até resignados - com o avanço da educação privada que já não ficamos chocados. A privatização da educação é, por suposto, um processo mundial. Mas, em vários países europeus, os filhos das diferentes classes estudam na mesma escola, do primário até á universidade. O critério de acesso para a Sorbonne, admitindo-se a classificação no exame de conclusão do ensino médio, permanece sendo o certificado de residência. Claro que viver no Quartier Latin não é barato. No entanto, é mais barato que pagar US$90.000 de mensalidades por ano em Harvard. No Brasil, qual é a possibilidade de encontrarmos na escola pública um filho de um burguês? Ao vivo e a cores, a maioria do povo brasileiro nunca viu e nunca verá um burguês, muito menos na sala de aula, ao lado dos seus filhos.
A promessa meritocrática faliu e com ela a escola pública. Todos os jovens das classes populares sabem que a escola em que eles estão, é uma escola na qual o seu destino social já está traçado. Aqueles que estão na escola pública sabem que, por maior que seja o seu talento, a chance de mobilidade social é reduzida, e os filhos da classe média, que estão na escola privada, sabem que vão ter que batalhar, desesperadamente, para conseguir uma vaga na universidade pública. Mesmo para um jovem de classe média argentino, a comemoração de quem é aprovado na USP – a família toda de lágrimas nos olhos, como se tivessem ganhado a loteria federal – é incompreensível. Já os poucos que receberão herança, e vão viver da renda do capital, estão em absoluta tranqüilidade, fazendo faculdades privadas no Brasil ou no exterior. A escola pública afundou em decadência. Ela foi destruída por vários processos. Além da privatização, o principal foi a desvalorização da carreira docente, a degradação profissional dos professores.
O que é a degradação social de uma categoria? Na história do capitalismo, varias categorias passaram em diferentes momentos por promoção profissional ou por deterioração profissional. Houve uma época no Brasil em que os “reis” da classe operária eram os ferramenteiros: nada tinha maior dignidade, porque eram aqueles que dominavam plenamente o trabalho no metal, conseguiam manipular as ferramentas mais complexas. Séculos antes, na Europa, foram os marceneiros, os tapeceiros, e em muitas sociedades os mineiros foram bem pagos, relativamente, por muito tempo. Houve períodos históricos na Inglaterra – porque a aristocracia era pomposa - em que os alfaiates foram excepcionalmente bem remunerados. Na França, segundo alguns historiadores, os cozinheiros. Houve fases do capitalismo em que o estatuto do trabalho manual, associada a certas profissões, foi maior ou menor. A carreira docente mergulhou nos últimos vinte e cinco anos numa profunda ruína. Há, com razão, um ressentimento social mais do que justo entre os professores. A escola pública entrou em decadência e a profissão foi, economicamente, desmoralizada.
Os professores foram ideologicamente desqualificados diante da sociedade. O sindicalismo dos professores, uma das categorias mais organizadas e combativas, foi construído como resistência a essa destruição das condições materiais de vida. Reduzidos às condições de penúria, os professores se sentem humilhados. Este processo foi uma das expressões da crise crônica do capitalismo. Depois do esgotamento da ditadura, simultaneamente à construção desse regime democrático liberal, o capitalismo brasileiro parou de crescer, mergulhou numa longa estagnação. O Estado passou a ser, em primeiríssimo lugar, um instrumento para a acumulação de capital rentista. O Estado retira da sociedade através de todos os mecanismos - o fisco e todos os mecanismos arrecadatórios - uma parte da mais-valia que é produzida e a redistribui para o Capital. Isso significa que os serviços públicos foram completamente desqualificados.
Dentro dos serviços públicos, contudo, há diferenças de grau. As proporções têm importância: a segurança pública está ameaçada e a justiça continua muito lenta e inacessível, mas o Estado não deixou de construir mais e mais presídios, nem os salários do judiciário se desvalorizaram como os da educação; a saúde pública está em crise, mas isso não impediu que programas importantes, e relativamente caros, como variadas campanhas de vacinação, ou até a distribuição do coquetel para os soropositivos, fossem preservados. Entre todos os serviços, o mais vulnerável foi a educação, porque a sua privatização foi devastadora. Isso levou os professores a procurarem mecanismos de luta individual e coletiva para sobreviverem.
Há formas mais organizadas de resistência, como as greves, e formas mais atomizadas, como a abstenção ao trabalho. Não é um exagero dizer que o movimento sindical dos professores, em todos os níveis, ensaiou quase todos os tipos de greves possíveis. Greves com e sem reposição de aulas. Greves de duas, dez, quatorze, até vinte semanas. Greves com ocupação de prédios públicos. Greves com marchas. E muitas e variadas formas de resistência individual: cursos para administração escolar, transferências para outras funções, cargos em delegacias de ensino e bibliotecas e, também, a ausência. Tivemos taxas de falta ao trabalho, em alguns anos, elevadíssimas. Além disso, temos uma parcela dos professores, inquantificável - é um tabu dentro das instituições e nos sindicatos - que são aqueles colegas que freqüentam a escola, mas não dão aulas. Entram na sala de aula, passam uma atividade na lousa e dispensam os alunos – faz quem quer, quem não quer sai –, já desistiram de dar aulas, é o último degrau. Cria-se uma situação de conflito latente entre os professores que dão aula e os professores que não dão aula. Por último, uma parcela dos professores desabou. “Surtaram”: as doenças profissionais são elevadíssimas, entre elas, a depressão é epidêmica.

Um programa socialista para a educação pública
As duas últimas questões são programáticas. O quarto tema são elementos para um programa que o marxismo revolucionário poderia apresentar para a educação. Um projeto para a reconstrução da escola pública e gratuita é, também, um plano para a educação dos educadores. Ensina a sabedoria popular que podemos conduzir um cavalo até à água, mas não podemos obrigá-lo a beber. Não haverá uma nova educação sem a mobilização livre dos sujeitos ativos no processo educacional.
O programa socialista para a educação brasileira começa por um resgate do lugar da educação e dos educadores. Os principais agentes de transformação da educação serão os estudantes e os trabalhadores da educação, pois são eles que a defendem contra os ataques do Estado. Em cada momento, qual será entre os estudantes e os professores, o segmento que estará na vanguarda?  Este é um falso problema. É um assunto sobre o qual não deveríamos ter um critério rígido; isto  é indeterminado, é incerto. A experiência histórica sugere que, em alguns momentos, os professores serão vanguarda e, em outros, os estudantes.
Essa não é a opinião dos reformistas. Ao lado dos liberais e dos conservadores, defendem uma campanha imunda que transforma os professores, de vítimas, em responsáveis pela crise da escola, criminalizando as greves de resistência. O Estado burguês defende que é o governo a vanguarda, o que é cômico se não fosse trágico. Como transferem a responsabilidade do fracasso escolar para os professores e os estudantes, insistem em mobilizar os pais para dentro das escolas, argumentando que a pressão externa da comunidade poderá melhorar a gestão. Os neoliberais “descobriram” que o problema da educação não é o corte verbas, mas a má administração. Uma campanha abjeta na televisão, apresenta o trabalho voluntário como a solução da escola pública, o que seria, evidentemente, risível, se não fosse desprezível.
Um programa para a educação tem que primeiro identificar quem são os sujeitos sociais da luta pela mudança. Não é sequer razoável pensar na luta por uma melhor escola pública, se o projeto for construído “demonizando” os professores. Este ponto de partida programático, a reivindicação dos professores como sujeitos, é uma ruptura com a estratégia reformista, porque identifica o Estado burguês como o inimigo da educação, e os docentes como os protagonistas da mudança. Os reformistas defendem, exatamente, o contrário. A concepção dos reformistas é igual à dos partidos ao serviço do Capital: o partido burguês na campanha eleitoral diz “o nosso programa para a educação é muito bom”. Aí os reformistas, o PT e o PCdoB dizem “o nosso programa para a educação é melhor”. Depois esquecem as promessas, por suposto, mas a concepção comum é que, quando chegarem ao Estado, aplicarão um programa contra os professores, porque são grandes sábios e os professores nem merecem ser ouvidos. A tradição marxista revolucionária não é esta.
A tradição marxista é que as organizações dos trabalhadores, sindicais e políticas, são instrumentos para os trabalhadores tomarem o poder, e eles, os trabalhadores, governarem a sociedade. Um partido revolucionário não “toma” o poder e não impõe um programa contra as massas; as massas é que mudam a sociedade e tomam o poder. O partido é um instrumento para a revolução e um organizador geral do projeto insurrecional. Recordando a epígrafe de Marx que abre este artigo, transformaremos a escola, nos transformando a nós mesmos. Lutamos por uma outra escola, porque nós mesmos lutamos para sermos diferentes daquilo que fomos e somos. Não haverá uma nova escola, se os professores não acreditarem nela. Não haverá uma nova escola, se a juventude brasileira não for chamada a construir essa nova escola, e não tiver paixão política pelo projeto.
Um programa para a educação passa por investimentos maciços na educação, porque nós acreditamos que é justamente o socialismo ou, pelo menos, a primeira fase de construção do socialismo que vai, pela primeira vez na história do Brasil, transformar em experiência social o que hoje não são senão utopias. O projeto do socialismo é a implantação de uma verdadeira equidade, e a escola será um dos instrumentos da equidade. A equidade é a meritocracia que não existe na sociedade brasileira de hoje. Mas, a equidade não é mesma coisa que a igualdade. A igualdade é “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, um critério de distribuição imortalizado por Marx e que foi tomada por todos os igualitaristas do final do século XIX. Na primeira fase de transição, no entanto, o critério de distribuição será “de cada um segundo suas necessidades; a cada um segundo o trabalho realizado”. Isso é a meritocracia, é a equidade: milhares de vezes mais igualitária que o capitalismo, mas ainda não é a igualdade social.
O projeto socialista é transformar a escola num dos instrumentos da equidade social. Esse projeto só é possível, se os educadores compreenderem que eles têm que estar disponíveis para serem, permanentemente, reeducados. Se eles compreenderem que o processo de educação é permanente processo de reavaliação e que, portanto, essa vida que nós escolhemos é uma vida em que ensinar e aprender não se encerra nunca. A primeira aprendizagem que existe nesta profissão, é que para ser professor será preciso ser eternos estudantes. Aquele que está sempre disposto a se colocar no lugar do outro.

Só a revolução socialista poderá garantir a educação pública universal
A quinta e última idéia é uma contextualização de porque um programa tão elementar como a educação universal só é possível, em nossa opinião, com a revolução social. Só a revolução socialista pode oferecer uma educação de qualidade, gratuita, e acessível para todos. A revolução social é a expropriação do capital, um processo econômico, mas ela se inicia, como toda revolução, como uma ruptura política. Este Estado é incapaz de oferecer uma escola de qualidade para todos: nunca funcionou, mas agora não é mais possível o Estado garantir a remuneração do Capital e os serviços públicos. É uma realidade internacional inquestionável. Sob o capitalismo, contudo, a educação virou uma mercadoria que só é acessível a quem pode pagar. A educação é um direito essencial, uma necessidade que está entre as mais intensas. A educação abre a janela da vida na infância para aquilo que é o nosso destino: o domínio consciente da natureza e de nossa sociabilidade. Por essa via, descobrimos a vocação de uma profissão, que é o sentido do trabalho, a plena realização do potencial humano.
Na sociedade que nós vivemos, porém, o trabalho é a maldição que nos oprime. O trabalho é o castigo que nos mortifica. É, às vezes, até a prisão, dentro da qual nós nos sentimos encarcerados. O projeto socialista é derrubar os muros da prisão, libertar o trabalho da forma alienada que ele tem no capitalismo e transformá-lo naquilo que é, na verdade, o sentido da nossa existência. O sentido da nossa existência é transformar as condições materiais e culturais da vida que nos entorna. O que nos transforma em humanos é o trabalho. Nós temos necessidades mais complexas que a vida vegetal e animal, nossas necessidades não são resolvidas só com o consumo de oxigênio e a transformação de carboidratos, proteínas, vitaminas e sínteses químicas que alimentam as sinapses do nosso cérebro. Nós precisamos do trabalho. Nós temos que agir. A união de conhecimento e ação, a práxis, é o nosso destino. A práxis humana é transformar o mundo e a nós mesmos através do trabalho.
 Os reformistas ignoram a necessidade de uma educação libertadora e desalienadora. Abandonaram o projeto da escola pública, porque aderiram ao programa do Estado mínimo. Já nos alertaram que, se não pagarmos as dívidas do Estado aos capitalistas, seremos vítimas de terríveis maldições bíblicas. Ai de nós, será a invasão dos gafanhotos, e os filhos dos corintianos nascerão todos palmeirenses. O fim dos tempos e a escuridão cósmica. Defendem, portanto, as políticas sociais focadas, como o Bolsa Família, argumentando que, sendo as verbas públicas disponíveis muito insuficientes para garantir escola de qualidade para todos, seria preciso atender aos mais necessitados. São, agora, os campeões da ideologia de que é preciso esquecer as reivindicações históricas dos trabalhadores, para atender aos mais humildes. O projeto de distribuir dinheiro aos miseráveis, no lugar de garantir o direito ao trabalho e a escola universal, é, no entanto, uma política reacionária. O direito ao trabalho e à educação são inegociáveis, e é preciso ter perdido, além de todos os reflexos socialistas mais elementares, até o bom senso, para renunciar a eles. Acontece que o capitalismo contemporâneo admite, todos os dias, que é impossível garantir trabalho e escola, e os reformistas se resignam, porque estão mais comprometidos com a defesa da propriedade privada de uns poucos, do que com o direito da maioria.
Os reformistas argumentam, também, que projetos de renda mínima, como o Bolsa Família, seriam progressivos, porque iriam além da relação salarial - uma das metas históricas do socialismo. O projeto socialista é, de fato, desmercantilização do trabalho, mas destruindo o Capital, e preservando o trabalho. O Bolsa Família é, exatamente, o contrário: mantém o Capital recebendo os dividendos das dívidas estatais, e condena os desempregados a receber esmolas, desmoralizando-os. Tem como objetivo inconfessável, somente, a paz social e os calendários eleitorais nos países da América Latina que estão explodindo. Suas seqüelas são previsíveis: dividirão os trabalhadores entre ativos e ociosos, e promoverão a proliferação de uma massa lumpen dependente do Estado, e por ele manipulável.
O projeto socialista, por sua vez, é incompatível com a propriedade privada e com o capital. Exige que a sociedade destrua este Estado, e destrua toda a organização política que tem como uma única função proteger a propriedade privada. Por que isto é pré-condição? Nós precisamos da revolução brasileira porque esta é a única possibilidade, num intervalo historicamente curto, de oferecer a toda a juventude um projeto para a vida. Se não suspendermos o pagamento das dívidas públicas, se não conseguirmos o controle do sistema financeiro, se não limitarmos, enfim, a ação dos monopólios, garantindo trabalho e educação para todos, não haverá futuro.
O lugar da escola hoje é um encontro de sociabilidade, mas não é um encontro mais com o repertório cultural que a humanidade construiu. Nós sentimos essa angústia, que é reconhecer que a escola agoniza. Nós somos, contudo, os guardiões de uma promessa: que através da arte, da cultura, da ciência que as gerações anteriores nos legaram, podemos construir um mundo melhor. Os professores se sentem tristes, sendo a última linha de defesa. Mas, não estamos sozinhos. O projeto pelo qual lutamos, que é a promessa inscrita no programa socialista, a liberdade e a igualdade humana, permanece sendo a causa mais elevada da época que nos coube viver.




[1] Karl Marx, Terceira Tese sobre Feurbach, Obras Escolhidas, São Paulo, Editora Alfa-Omega, s/d, p.208/9.
[2] Bia Barbosa, in Carta Maior, 02/01/06, http://agenciacartamaior.uol.com.br/

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